Personagens de Lobato vivem desencanto hi-tech

"Narizinho chega ao Reino das Águas Claras e não há surpresa em seus olhos. Lambaris falam, um caramujo traz pílulas mágicas em sua maleta de veterinário, sardinhas vestem terno e um príncipe escamado faz a corte à neta de Dona Benta. Mesmo diante de cenário tão improvável, a menina saltita com a tranqüilidade déjà vu de quem vê mais uma reprise de A Pequena Sereia, da Disney. Na nova versão do Sítio do Pica-pau-amarelo, que estreou na Rede Globo no Dia da Criança, tudo é muito hi-tech. O mundo de Monteiro Lobato ganhou uma jovialidade de videoclipe, os cortes de edição garantem saltos rápidos à história e os personagens tomaram banho de modernidade. Dona Benta (Nicete Bruno) navega pela Internet, um microondas segura a onda de Tia Nastácia (Dhu Moraes) na cozinha e os efeitos especiais são tão salientes que dão às cenas uma textura de desenho animado.
O resultado é uma leitura impermeável, efervescente e retocada do maior clássico infantil brasileiro. Tudo nela ambiciona o clima de reatualização divertida com que Monteiro Lobato costumava homenagear, nas páginas do Sítio, os clássicos mundiais de seu tempo. Há quem veja com suspeita tal ênfase na tecnologia para a adaptação de uma obra que ganhou o imaginário de gerações. Mas a plástica que o Sítio de Lobato sofreu é menos desrespeitosa que inconsistente. Sinais do tempo - O Sítio da Globo dá sinais de seu tempo. Os personagens mal conversam, arrochados entre o ritmo de clipe e a pouca duração dos capítulos diários (15 minutos dentro do infantil Bambuluá com Angélica). Ao falarem, os diálogos saem picotados e telegráficos, enxutos o suficiente para as indicações indispensáveis de cada passagem do enredo. Engessada, a encenação professoral acentua um ar postiço que contamina o conjunto.
A criançada de hoje, decerto, tem um olhar bem distinto das que viram as outras versões do Sítio na TV (na Tupi de 1951 a 1964, na Band em 1968/69 e na Globo/TVE, entre 1977 e 86). Emília virava metralhadora falante, para espanto geral. Narizinho descortinava o reino do Príncipe Escamado com viva atenção pelo desconhecido. Pedrinho encarava a Cuca com um misto de desafio e medo, como quem não sabe o que aconteceria depois. Sem surpresa - Na versão atual, no entanto, não há surpresa na reação dos personagens com o que de maravilhoso encontram pela frente. Os roteiros parecem construídos para incorporar uma naturalidade muito própria diante da pirotecnia, da novidade e do espetáculo virtual. O prato é servido ao gosto de quem está acostumado a um cotidiano povoado por games, efeitos especiais de Hollywood, desenhos hiper-realistas e informação on-line, aparatos que tão bem nos preenchem de encanto.
Uma boneca fala, um saci aparece, um rio vira reino e é como se todos já se soubessem parte de uma obra de ficção. Ficção de Lobato, digerida até o bagaço décadas a fio. Um ar descolado diante de qualquer novidade contamina os personagens do Sítio da Globo e, não fosse a força própria de seus tipos, a nova adaptação passaria por efêmera e mal resolvida. Impacto - O desencanto déjà vu, no entanto, parece dar sentido e fôlego a uma atração feita para agradar. Com a estréia do Sítio do Pica-pau-amarelo, o Bambuluá com Angélica teve sua audiência média aumentada em cinco pontos. O infantil da Globo, que costumava alcançar dez pontos de média, agora registra médias de 15 pontos.
E tudo graças aos 15 minutos finais do programa, quando o Sítio é exibido, às 11h30. É só o remake entrar em cena, que a audiência da Globo sobe, de imediato, cerca de quatro pontos. Na estréia no dia 12, uma sexta-feira, Bambuluá estava com 14 pontos. Quando o Sítio começou, subiu para 17. O quadro teve pico de audiência de 20 pontos, para um share (número de aparelhos de televisão ligados) de 37%. No segundo dia de exibição, na segunda-feira, Bambuluá entregou seu horário com 12 pontos e o Sítio subiu para 16 pontos. Na terça, o quadro começou em 11 e terminou com 16 de média. Na quarta, Bambuluá estava com 11 e pulou para 18 com o Sítio do Pica-pau-amarelo.
Os números são do Ibope, em São Paulo. São números eloqüentes para uma semana de estréia. Mostram que as falhas de coerência interna na encenação do atual Sítio podem não incomodar tanto sua geração de telespectadores como talvez incomodasse as outras, que lhe antecederam. Tecnologia não é inimiga da fantasia nem a linguagem de clipe é, em si, um ataque à narrativa tradicional (O Auto da Compadecida que o diga). Mas faltará magia à geração dos novos Narizinhos e Pedrinhos? A familiaridade com um mundo de virtualidades à flor da pele pode criar uma couraça na sensibilidade da garotada? Ou isso é apenas exagero de uma crítica saudosista, feita por gente grande, que gosta de ouvir histórias - com calma? O desempenho do programa pode, quem sabe, dar um sinal do futuro."


fonte: Observatório da Imprensa (21/10/2001)